sábado, 9 de maio de 2009

A hora e vez de Augusto Matraga e a Filosofia Grega

Homero

Justiça na Virtude e não na Força, na Prudência

A Ilíada, em seu clímax, trata da desavença entre Aquiles, que é um herói militar grego, e o general dos gregos, Agamenon, por causa de uma refém, de uma prisioneira de guerra que os dois disputam. E, em cima disso, vai surgir a idéia de prudência, a idéia do ser humano conseguir analisar a realidade a partir do conhecimento dos limites comuns, e assim saber como ele pode ou não pode proceder. No caso, existe o excesso, a imprudência das duas partes; tanto de Aquiles quanto de Agamenon.
A obra máxima do gênio ocidental começa com um momento baixo do herói grego: o momento da ira de Aquiles. A partir desse momento negativo é que Homero nos ensina os conceitos centrais da virtude grega. Virtude para os gregos é areté.
A civilização grega abomina a desmesura. O maior pecado para o homem grego é conhecido como a hybris, a falta de equilíbrio. A busca do equilíbrio apolínio (do deus Apolo), das linhas equilibradas. A Ilíada inicia-se com uma lição negativa: o maior herói grego age com desmesura, age sem a prudência. Ele castiga os inimigos e comete o ato mais bárbaro aos olhos do grego que é não só matar o inimigo, mas deixá-lo sem sepultura.
O mestre de Aquiles (Félix) fala: Você deve se perpetuar pelas ações e pelas palavras. Você não veio à Terra para dominar os povos e oprimi-los. Você veio aqui para enaltecer as palavras e as ações. Isso é a filosofia do direito de Homero. Para Aristóteles, o homem é um ser político, loquaz.

Aquiles, o heroísmo sobre-humano de um jovem magnífico que prefere, em plena consciência, a dura e breve ascensão de uma vida heróica a uma longa existência sem honra. Sem indulgência pelo adversário só se atenta pela busca da glória pessoal. O triunfo de Aquiles sobre o poderoso Heitor, em que a tragédia da grandeza heróica se mistura com a submissão do homem ao destino.
Homero situa o homem em primeiro plano e o seu destino. O caráter antropocêntrico do pensamento grego.

Outra lição importante de Homero é a lição ética. A ética é o conjunto de valores de uma sociedade, conjunto de valores humanos. Mas os gregos tinham uma noção originária da ética. A ética “aqui moram também deuses”. A ética é o ethos, a morada dos deuses. Tudo que é separado na filosofia moderna, religião-política, religião-filosofia, é unido na filosofia grega. Ethos antropos daimon, essa é a lição também de Homero. Para Heráclito, A personalidade do homem é o seu destino – Ethos antropos daimon.

A Odisséia exalta, sobretudo em seu herói principal, acima da valentia, a prudência e a astúcia (Odisséia – Livro IX).
Mas, Ulisses também sabe ser imprudente:
Então os meus companheiros diziam-me, pediam-me que os deixasse tirar alguns queijos antes de nos irmos embora; depois regressaríamos a correr à nau ligeira, não sem termos feito sair dos estábulos cabritos e anhos, e navegaríamos sobre a onda salgada; mas eu não consenti, o que, todavia, teria sido bem melhor; queria vê-lo e esperava que ele me daria presente de hospitalidade. Mas o seu aparecimento não viria contribuir para a felicidade dos meus companheiros.
Se ele ouvisse um de nós elevar a voz e falar, não tardaria a quebrar as nossas cabeças e as tábuas da nossa nave com um áspero rochedo, porquanto pode ainda atingir-nos
A astúcia de Ulisses:
_ Que dor te apoquenta, Polifemo, e por que motivo em plena noite imortal soltaste esses gritos que nos despertaram? Acaso um mortal se apossa contra a tua vontade dos teus rebanhos, ou procuram matar-te por manha ou violência?
E do fundo do antro, o forte Polifemo respondeu-lhes:
_ Quem mata, amigos? Ninguém, por manha; não há violência.
Eles dirigiram-lhe em resposta estas palavras aladas:
_ Se ninguém te faz violência e tu estás sozinho, é sem  dúvida uma doença que te envia o grande Zeus e que tu não podes evitar; invoca então o nosso pai, o poderoso Posídon.
Antígona

O direito que vem da linha feminina e não machista dos coronéis, o direito moral – enterrar o irmão – e não o direito do poder constituído

Toda a trama de Antígona, a discussão sobre os direitos fundamentais em Antígona, gira em torno deste quito ancestral sagrado: o enterro digno, o enterro religioso.


A Mulher na Cultura Aristocrática

Na velha cultura aristocrática a areté própria da mulher é a formosura. Isto é tão evidente como a valorização do homem pelos seus métodos corporais e espirituais. A formação da mulher é a cortesã das idades cavaleirescas. A mulher não surge apenas como objeto de solicitação erótica do homem, como Helena ou Penélope, mas também na sua firme posição social e jurídica de dona de casa. Suas virtudes são a modéstia e o governo do lar.
Penélope é muito louvada pela moralidade rígida e virtudes caseiras. Desamparada e ignorante do paradeiro do esposo, e, apesar das dificuldades surgidas com os pretendentes, é senhora fiel e afetuosa para as servas. Mulher inquieta e angustiada pelo cuidado com seu único filho.


Platão – O Mito da Caverna

O Matraga original via só as sombras, as aparências, e, ao ser expulso da caverna, seu sítio, após a surra, ele vem a reconhecer a verdade sobre seu comportamento social injusto

A caverna: uma imagem da Paidéia

Sócrates

Retrata homens vivendo numa caverna subterrânea, a qual se abre para luz por uma comprida galeria. Seus moradores estão presos nela desde a meninice e só podem olhar para frente. Estão de costas para a saída. No fundo da galeria arde uma fogueira. Os prisioneiros não podem voltar a cabeça para a saída da gruta, por isso, durante a vida inteira, só viram sombras. Então, consideram-nas como realidade. Quando as veem passar, ouvem vozes dos portadores e julgam ser das sombras.
Se um prisioneiro saísse para a luz e a fitasse, seria incapaz de contemplar as cores brilhantes das coisas cujas sombras vira antes, e não acreditaria em quem lhe afiançasse que tudo o que vira antes era nulo. Estaria de tal forma convencido de que as sombras constituam a realidade que correria para esconder-se outra vez na gruta, com os olhos doloridos. Precisaria ir se acostumando, com o tempo, até poder estar em condições de contemplar o mundo da luz. A princípio, não poderia ver senão as sombras e, em seguida, as imagens dos homens e das coisas refletidas na água, e só por fim estaria apto a ver diretamente as coisas. Contemplaria o céu e as estrelas da noite e a sua luz, até que se sentiria capaz de olhar diretamente o sol (não o seu reflexo nas águas ou em outros objetos).
Quando se lembrasse da consciência que tinha na prisão e de seus companheiros, considerar-se-ia feliz pela mudança, e lamentaria seus antigos irmãos de cativeiro. E se entre os prisioneiros houvesse honras e distinções para premiar aqueles que melhor distinguissem as sombras, não seria fácil ao cativo resgatado desejar aquelas honras. Tal como Aquiles de Homero, preferiria ser o mais humilde jornaleiro do mundo da luz do espírito a ser rei daquele mundo de sombras. Por outro lado, se voltasse para a caverna, a rivalizar com os outros cativos, cairia no ridículo, pois já não conseguia ver mais nada nas sombras. Seria dito que ele arruinara os olhos ao sair para a luz. E, se tentasse libertar outro qualquer para o mundo da luz, correria o risco de ser morto.
Sócrates antecipa todo um processo espiritual, mediante a visão da ascensão da alma à região da luz e da verdadeira realidade. Põe em relevo a metamorfose operada na alma.
Platão interpreta as alegorias do sol e da caverna, entende ser uma conversão, um volver ou fazer girar toda a alma para a luz da idéia do bem.
Hesíodo

Os Trabalhos e os Dias

O Mundo do Trabalho

A luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra dura e com os elementos tem o seu heroísmo e exige disciplina, qualidade de valor eterno para a formação do homem. A Grécia foi o berço de uma humanidade porque pôs acima de tudo o apreço pelo trabalho. Heródoto destaca que a Grécia sempre foi um país pobre, mas baseia nisso sua arite. Submete-se a uma lei austera. Assim se defende da pobreza e da servidão. Seu solo é formado por vales estreitas e paisagens cortadas por montanhas. Quase não tem vastas planícies, o que obriga a uma luta incessante com o solo para arrancar dele o que só assim pode dar. A agricultura e o pastoreio foram sempre as ocupações mais importantes.

Qual que é o tema do poema?

(...) é o processo com o seu irmão Perses, invejoso, briguento e preguiçoso, que, depois de ter malbaratado a herança paterna, insiste constantemente em novos pleitos e reclamações. Da primeira vez conquistou a boa vontade do juiz por meio de suborno. A luta entra a força e o Direito que se manifesta no processo não é, evidentemente, um assunto meramente pessoal do poeta; este se torna, ao mesmo tempo, porta-voz da opinião dominante entre os camponeses. O seu atrevimento é tão grande que chega a lançar no rosto dos senhores ‘devoradores de presentes’ a sua ambição e o abuso brutal do poder. (Paidéia, página 87)

Hesíodo reclama de o seu irmão ter usurpado da herança. O irmão representa a luta entra a força e o direito que se manifestam no processo. Força em grego, bias, kratos e o direito, nomos. Hesíodo é o poeta do nomos. Em Hesíodo temos um novo conceito de justiça que corresponde à nova condição sociológica da classe a qual ele pertence: a classe dos camponeses. Esse descontentamento de Hesíodo em relação à classe dominante manifesta-se pela invocação de uma nova deusa da justiça, que é chamada Diké.
O poeta quer que Perses ouça sua doutrina e que este esteja disposto a se deixar guiar por ela, caso não seja capaz de conhecer intimamente o que lhe é proveitoso e o que lhe é prejudicial. É o fundamento primeiro de uma doutrina moral e pedagógica. Perses não tem concepção justa, mas o poeta admite que ela possa ser ensinada. O trabalho não é vergonhoso, a ociosidade, sim. Traz respeito e consideração. Faz-se necessário desvie a atenção da cobiça dos bens alheios e foque seu próprio trabalho, cuidando de mantê-lo.
O conceito de justiça de Homero é o conceito aristocrático, dos reis, dos aristocratas, dos guerreiros, e não dos trabalhadores. A obra de Hesíodo é chamada Erga, Os Trabalhos; trata do conceito de trabalho na Grécia.
Hannah Arendt, em A Condição Humana, explica o conceito de trabalho da Grécia diferente do conceito bíblico, porque no conceito bíblico de trabalho existe a idéia da maldição e na Grécia não existe essa equiparação do trabalho com a maldição. Em Hesíodo tem-se um novo conceito de justiça. Diké converte-se, aqui, para o poeta, numa divindade independente. É a filha de Zeus que se senta junto dele e que se lamenta quando os homens aplicam desígnios injustos.
Como é justiça em grego? Diké. Como é a justiça para Homero? Têmis. Atende à justiça e esquece a violência. Violência em grego é Bia ou kratos. Hesíodo pensa que, entre os homens, não deve se apelar jamais para o direito do mais forte
Toma isto em consideração: atende à justiça e esquece a violência. É o uso que Zeus impõe aos homens: os peixes e animais selvagens e os pássaros alados podem devorar-se uns aos outros, porque entre eles não existe o direito. Mas, aos homens, concedeu ele a justiça, o mais alto dos bens. (Paidéia, página 97)
No quê que é diferente a justiça de Homero e a justiça de Hesíodo? A justiça da Diké é a justiça dos fracos contra os fortes. É em nome de Diké que os gregos, tempos depois, irão lutar contra os persas, contra os orientais, contra a civilização irracional da renúncia da vida e do trabalho. Os gregos exaltam o trabalho. O trabalho é celebrado como o único caminho, ainda que difícil, para alcançar a arete (a virtude). O conceito abarca, simultaneamente, a habilidade pessoal e o que dela deriva bem estar e consideração. Não se trata da arete guerreira da antiga nobreza (a justiça de Homero), nem da arete da classe proprietária, baseada na riqueza, mas sim da arete do homem trabalhador, que tem a sua expressão numa posse de bens moderados. Aristóteles condenava o esbanjamento de dinheiro. O ideal do grego não é um ideal de pobreza, é um ideal de moderação. É por isso que Hesíodo é o poeta do povo, é o poeta do Direito. Daí é que surge a idéia de Direito. Hoje em dia, nós esquecemos que o Direito volta, às vezes, a ser o que era na época de Homero: o direito de uma classe aristocrática.
O seu objetivo é arete, tal como a entende o homem do povo. Quer fazer dela alguma coisa. Em vez de ambiciosos torneios cavaleirescos exigidos pela ética aristocrática, surge a calada e tenaz rivalidade no trabalho (Paidéia, página 100)
Dois irmãos que se odeiam, como na Bíblia há Caim e Abel, só que o trabalho não é amaldiçoado.
O Homem deve ganhar o pão com o suor do seu rosto. Mas isto não é uma maldição, é uma benção. É este o preço da arete. Assim ressalta com perfeita nitidez que Hesíodo quer com plena consciência colocar ao lado do adestramento dos nobres, tal como se espelha na epopéia homérica, uma educação popular, uma doutrina da arete do homem simples. A justiça e o trabalho são os pilares em que ela assenta. (Paidéia, página 100)
Na poesia de Hesíodo consuma-se, diante dos nossos olhos, a formação independente de uma classe popular, excluída até então de qualquer formação consciente. (Paidéia, página 103)

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Augusto Matraga e Nietzsche

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Seminário 8 - A Hora e a Vez de Augusto Matraga
Nietzsche – “Tornar-se o que é”
Por Pedro Henrique Dias Batista
A interpretação minuciosa do conto “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” exige também a construção de um paralelo entre a transformação ocorrida por Nhô Augusto após seu espancamento e após a inscrição da marca em sua polpa glútea direita e a transformação do homem nas palavras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche.
Em seu livro Ecce Homo, cujo subtítulo é “Como alguém se torna o que é”, Nietzsche analise a condição humana no tempo presente e os elementos que contribuem para a constante transformação do ser humano. Para fundamentar as diferenças individuais, o autor alemão analisa a instintiva autodefesa, ou seja, o apartar daquilo que não é necessário e não vai de acordo com o gosto do indivíduo.
O “não” é a forma com que esta separação se torna possível. Este “não” definitivo deve ser uma exceção à regra, sendo um instrumento de amputação e afastamento somente do que não é necessário e que seria passível de negações futuras. Em regra, deve-se aceitar-se aquilo que é necessário ou que não cause problemas, pois somente assim a autodefesa condiz com condutas inteligentes. A habitualidade não-fundamentada do “não” afasta o sentido inteligente da negação e excede os limites da autopreservação.
Partindo disso, Nietzsche responderá a pergunta sobre como a gente se torna o que a gente é. Considerando a autodefesa, a autopreservação e o egocentrismo, o autor verá o destino como conseqüência do ser humano enquanto objeto em constante mutação, uma vez que tudo influi de alguma forma no ser humano, não só as idéias que o indivíduo tem, não só seus acertos, mas também decisões erradas, descaminhos, atrasos, modéstia, seriedade, entre outros fatores.
Desta forma, afasta-se qualquer idéia de previsibilidade quanto ao futuro e, conseqüentemente, quanto ao reconhecimento do indivíduo como ele é no presente. Quando se imagina o futuro, quando se planeja ações, considera-se o momento presente para a posterior especulação, ou seja, aquele que enxerga si mesmo no futuro, imagina-se na forma presente, porém no momento futuro pensado. Porém, esta previsão interna não ocorre, pois aí não são consideradas as constantes mudanças do ser. Não é possível antever os acertos e desacertos que levarão à condição futura do indivíduo.
Não só a tarefa, o objetivo e o sentido são causadores das decisões. Existem também momentos em que ocorrem impulsos desinteressados por parte do indivíduo, ou seja, atitudes irracionais, que trabalham em prol do egocentrismo e da egocultivação e que também determinam a essência futura.
Por estas razões, mesmo o “ser” (essência) presente está longe de ser reconhecido pelo indivíduo. O que ele assume como tarefa a ser realizada, ou seja, projetada para o futuro, já é realizada no presente sem que haja esta percepção, pois situações determinantes ocorrem constantemente, racionalmente ou não.
A soma destes fatores todos ocasiona uma transvaloração dos valores intrínseca ao ser humano. A multiplicidade de recursos determinantes presente no indivíduo é grande, porém, internamente, estes recursos possuem uma harmonia própria, sem que haja qualquer tipo de antítese, mistura ou reconciliação entre eles. Nietzsche considera isso um caráter artístico do instinto, pois houve o encaixe de toda uma variedade de experiências que determinou o que o indivíduo é, ainda que ele não possa apreender o “ser” (essência) em um tempo presente. Nietzsche se considera, portanto, a síntese de uma natureza heróica, proveniente de um conjunto atemporal de experiências.
Desta forma, Augusto Matraga se torna o que é. O momento de sua redenção, no qual ocorre sua hora e sua vez, caracterizado pelo término da luta final com Joãozinho Bem-Bem, simboliza o fim de sua tarefa, significando a missão cumprida e o definitivo tornar do ser o que ele é.
Ocorre uma sucessão de fatos com a personagem principal, desde a sua criação deficitária na infância, passando pelo seu período de poder e maldade, sem a assunção de qualquer valor religioso, a perda de sua identidade após a surra realizada pelos capangas do Major Consilva, o renascimento e a vivência dos novos valores e a busca por uma justiça em sentido religioso. Esta sucessão de fatos não era previsível, mas sim atuou como obra do destino e definiu a tarefa desempenhada por Matraga, a qual atingiu sua finalidade. Guimarães Rosa evidencia isto na conclusão do conto, na qual Matraga é reconhecido, extinguindo a relação de anomia em que sempre esteve no período da transformação.
O destino desempenha, portanto, apesar de toda a lógica que pode ser constatada, um papel importante na obra, o que se relaciona diretamente ao que é formulado por Nietzsche, pois as vivências, decisões, impulsos desinteressados, instinto de autodefesa e influência do egocentrismo agem de maneira unitária de forma a determinar “o que” e “quem” é Augusto Matraga. Sua tarefa só foi reconhecida depois de completada, uma vez que, antes disso, era impossível seu reconhecimento e sua previsão.
Conclusivamente, a transformação é dada em virtude de uma alteração interna inviolável de Matraga. Não há, portanto, uma modificação essencial, em que algo novo e sem relação nenhuma com o passado é inserido ou algo é retirado de Matraga. O “tornar-se o que é”, como ressalta Nietzsche, é decorrente de uma inteireza histórica individual. A luta final e a morte de Augusto Matraga determinam a sua hora e sua vez. Sua identidade é reencontrada, ele atinge sua realização e seu destino.
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Seminário 8 - A Hora e a Vez de Augusto Matraga
A Hora e a Vez de Augusto Matraga ou “de como alguém se torna o que é”
Adélia Bezerra de Meneses
Por Pedro Henrique Dias Batista
Adélia Bezerra de Meneses faz, neste texto, uma interpretação minuciosa do conto de Guimarães Rosa, explicitando os papéis de cada personagem, a relação entre os nomes das personagens e estes papéis e outros traços significativos presentes no conto.
O intuito aqui é discorrer sobre a visão da autora com relação ao símbolo tatuado pelos capangas do Major Consilva na “polpa glútea” direita de Nhô Augusto, após seu espancamento. O interessante é perceber que a figura tatuada, um triângulo inscrito em uma circunferência, possui um grande valor simbólico.
Inicialmente, extrai-se uma relação deste símbolo com a trindade cristã (o Pai, o Filho e o Espírito Santo), o que possui uma relação direta com a personagem principal, que passa de uma anomia religiosa para uma situação de grande sofrimento, simbolizando a purgação dos pecados e a mudança para uma conduta correta sob o ponto de vista religioso, honrando a honestidade, o trabalho e a justiça (sob o ponto de vista da religião católica, tomando por base o amor ao próximo) ao invés de violência e egoísmo.
Consta ainda no conto que Matraga saberá “transformar sua marca de ignomínia em marca de pertença”, evidenciando que a vida anterior à marca seria um período perdido, um período de maldades que não honra sua condição humana e no qual não há qualquer diretriz valorativa religiosa. No período posterior à marca, porém, Augusto Matraga carrega a marca como o símbolo de sua força de superação, de sua mudança e da inclusão de valores em seu existir. A marca, portanto, significaria o momento da transformação.
Na busca pelo significado do nome “Matraga” e sua relação com a figura tatuada, a autora remete ao matraz, que consiste em um vaso utilizado para operações alquímicas, como destilação, por exemplo. Como se sabe, alquimia não significa somente a transformação em ouro, mas também a transformação elementar, anímica, de todo um processo existencial, significando uma tendência do objeto a ser como realmente é, ou seja, a exposição dos traços evidenciados pelo destino. Esta descrição é adequada perfeitamente à condição em que se encontra Augusto Matraga, uma vez que este realmente experimenta uma transformação alquímica, transformando-se a essência anterior em um acessório elementar da essência posterior, existindo assim, praticamente, um renascimento (daí a ressurreição relacionada a Jesus Cristo e a purgação dos pecados humanos).
O processo de recuperação de Nhô Augusto, considerando a descrição de suas feridas e sofrimento quando está aos cuidados de Pai Serapião, também possui relação com os processos alquímicos de transformação. Assim, a putrefação de Augusto Matraga é elemento condizente com a purgação e a putrefação alquímica, a qual culmina com sua transformação existencial.
É importante lembrar que Matraga sofre uma mudança. Nada escapa para fora ou se mistura à essência. Tudo é uma transformação elementar que busca “tornar o ser o que ele é” (discutiremos isto no próximo texto, o qual abordará a relação entre o processo existencial constante de Nietzsche e o descrito no conto de Augusto Matraga). O novo ser, fruto do renascimento, portanto, é novo somente no seu sentido externo, tomando por base os valores ou a perfeição, por exemplo, mas intrinsecamente possui como elementos essenciais aqueles já existentes outrora.
Conclusivamente, a autora discorre ainda sobre o kairós, que é o momento astrológico oportuno da alquimia, no qual as coisas se farão. No conto, este momento é dado na luta final entre Nhô Augusto e Joãozinho Bem-Bem, no qual o primeiro tem sua “áurea hora”, sua “aurora”. Este momento representa a hora e a vez de Augusto Matraga, significando a realização do que tem que ser realizado, o kairós de Augusto Matraga. Não à toa, as palavras usadas para definir a personagem principal ao longo do conto é “Nhô Augusto”, mas no final ele é denominado “Matraga”, o que leva ao reencontro de sua identidade e à sua autorrealização.

A hora e a vez de Augusto Matraga ou “de como alguém se torna o que é”

In: Literatura e Sociedade. São Paulo: USP, FFLCH e DTLLC, 2007/2008

Adélia Bezerra de Meneses

Universidade Estadual de Campinas / Universidade de São Paulo

Estória de um valentão, Augusto Esteves Matraga, prepotente, opressor, desrespeitador de mulheres e violento ao extremo. Guimarães Rosa o apresenta como alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros (...); duro, doido, sem detença; e ainda: estúrdio, estouvado e sem regra.

Adélia Bezerra de Meneses destaca que sem detença e sem regra quer dizer sem lei. Nada o detém, não bastasse, ele nunca havia trabalhado.

O conto se inicia num período de baixa na vida de Nhô Augusto (dívidas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, terras no desmando, as fazendas escritas por paga), até mesmo a mulher, a quem ele desdeixava, apaixona-se e foge com outro, levando a filha. E o outro era diferente! Gostava dela, muito... Mais do que ele mesmo dizia, mais do que ele mesmo sabia, da maneira de que a gente deve gostar.

A autora é enfática ao chamar a atenção do leitor para o nome do outro, a saber: Ovídio. Esse é o nome do escritor latino que escreveu A arte de amar. Dessa arte Nhô Augusto não conhecia nada. De Dionora, gostava (...) da sua boca, das suas carnes. Só. O que ele conhecia era o amor venal das prostitutas, das mulheres perdidas. Também, não respeitava mulher dos outros.

      Mãe de Nhô Augusto morreu com ele ainda pequeno... Teu sogro era um leso, não era para chefe de família... Pai era como se Nhô Auguso não tivesse... Um tio era criminoso, de mais de uma morte, que vivia escondido, lá no Saco-da-Embira... Quem criou Nhô Augusto foi a avó... Queria o menino p´ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e ladainha...1

Depois de levar uma terrível surra e ser marcado a ferro com a marca de gado do Major, foi dado como morto. Um casal de pretos, que morava nas redondezas, acha “vida funda” no corpo de Nhô Augusto e cuidam dele. Mãe Quitéria lhe leva comida à boca, dá-lhe de beber a cuia d’água: ela e Pai Serapião colocaram talas em suas fraturas, dão lhe remédio de ervas, é Pai Serapião quem lhe lava as feridas bichadas com creolina etc. Nhô Augusto regride a uma situação infantil – de um bebê. Recebe cuidados corporais que, na linguagem da psicanálise, reinvestem o corpo de Nhô Augusto de afeto.

Quitéria “quita” o que era devido a Matraga, em termos de ausência da figura materna. Ele fica quites com essa grande falta. Serapião, por sua vez, vem de Serapis, deus egípcio (de Menphis, da época ptolomaica), e que mais tarde foi identificado com o deus Esculápio (ou Asclépio), deus da Medicina – que não apenas curava os doentes, mas ressuscitava os mortos. Pai Serapião restaura para Nhô Augusto o significante paterno. Assim, é como se Nhô Augusto revivesse a situação de desamparo infantil, mas, agora, com possibilidade de reparação.

Hélio Pellegrino, num texto intitulado Pacto edípico e pacto social, diz:

      Não nos esqueçamos de que o pai é o primeiro e fundamental representante, junto à criança, da lei da cultura. Se ocorre, por retroação, uma tal ruptura, fica destruído, no mundo interno, o significante paterno, o Nome-do-Pai, e em consequência, o lugar da Lei. Um tal desastre psíquico vai implicar o rompimento da barreira que impedia – em nome da lei – a emergência de impulsos delinquenciais pré-edípicos.2

O início do conto dá mostras de quão longe iam tais impulsos delinquenciais de Nhô Augusto. E, a Lei da Cultura, ou Lei do Pai, diz que civilizar é reprimir, ou, então, suprimir. Na esteira de Freud, dá lugar a reflexões sobre o trabalho. Para Hélio Pelegrino, sob a ótica do Pacto Social, trabalhar é aceitar uma ordem simbólica, é disciplinar-se, é abrir mão da onipotência e da arrogância primitiva em nome de um todo articulado organicamente.

Na fala com o padre, este diz a Nhô Augusto sua vida foi entortada no verde. E, ainda: Você nunca trabalhou, não é? Pois agora, por diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Sugere-lhe dominar sua agressividade: Modere seu gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que ele. Vislumbra-se uma repressão instintual para se passar do mundo da natureza para o mundo da cultura.

Nhô Augusto canalizará sua valentia e violência numa linha ética, altruísta. Recusa o convite para se amadrinhar com a gente de Joãozinho Bem-Bem. Sacrifício da satisfação instintual em benefício de toda a comunidade.

Em sua partida, toma um burro por montaria e deixa-se guiar pelo acaso. Entrega-se ao destino. O acaso representa a visão de mundo popular, sendo articulado ao sagrado e ao Destino. No mais das vezes, na narrativa roseana, deixar-se guiar por um animal é sinal de salvação, como no conto Burrinho pedrês.

É levado, então, a um povoado que está em ebulição, onde o bando de Joãozinho Bem-Bem pretende vingar a morte à traição de Juruminho. O velho preto pede clemência (pede pelo sangue de Cristo, pelas lágrimas da Virgem, e pelo corpo de Cristo na Sexta-Feira da paixão), dado que a vingança recairia sobre pessoas inocentes (o assassino havia fugido). Joãozinho Bem-Bem não pode atendê-lo. É a regra, o nomos do sertão. Então, Nhô Augusto, na defesa dos desamparados, intervém. É a lei de Talião, representada por Joãozinho Bem-Bem, contra a lei do coração, ou lei cristã, representada pelo Nhô Augusto convertido. Este usa de toda a sua violência, num sentido ético, para salvar os fracos. É por meio da violência que ele revelará seu ethos violento. A tragédia mostra a impossibilidade de conciliação entre leis diferentes.

As categorias aristotélicas se revelarão operantes: a anagnorisis, isto é, o reconhecimento da própria identidade. Na reviravolta do destino, Matraga é reconhecido por um conhecido e meio parente. No momento de sua morte ele tem sua identidade revelada. Ainda, o narrador se refere a ele como Matraga. Morre nomeado, identificado, individualizado.

É pertinente observar o elemento a marca3 com que Matraga é ferrado, um triângulo inscrito numa circunferência. Há três itens que não são elementos aleatórios (nome de Matraga, sua marca e sua hora – kairós), mas integrados.

Trata-se de duas figuras básica, singularmente simples, dotadas de alta energia simbólica. Nogueira Galvão estuda essa simbologia transitando por estudos da heráldica, da cabala, da alquimia. O triângulo eqüilátero simboliza a perfeição, sendo encontrado na iconografia de todas as civilizações desde os tempos imemoriais. Tornou-se representação gráfica da Trindade Cristã: Deus é um ser trinitário. O círculo, por sua vez, um ponto expandido, ao mesmo tempo a mais simples e a mais complexa das formas geométricas, representa a totalidade. São sinais de transcendência. Duas formas vetustas que se potencializam.

É essa marca, contudo, que é tatuada na carne de Matraga – marca de ferrar gado (sinal de propriedade que denuncia o dono do animal). Matraga saberá transformar essa marca de desonra em marca de pertença. O que para o major Consilva e seus capagangas é marca aviltante, torna-se sinal de destino. É a dor do ferro em brasa na polpa glútea que faz com que Matraga, inerme no chão, depois de ser moído por pancadas, dê um salto mortal que ao mesmo tempo é um salto para a vida.

Roberto dos Santos, no seu magnífico filme: A hora e a vez de Augusto Matraga, de 1965, não dá muito importância à descrição da marca de gado do major. Ele não era muito dado a veleidades exotéricas. E o que se vê no filme é um ferro com uma forma que se assemelha a um C (certamente de Consilva), ou mesmo uma ferradura. Há um descaso com a simbologia. Contudo, em claro apelo visual, Nhô Augusto é marcado no peito. O que é bem mais dramático do que na polpa glútea. A marca de gado se faz na perna, na anca, enquanto a de pertença se faz no peito, simbolicamente no coração. Portanto, a transcendência que se pretendia expulsar, volta com mais força, pois, como canta o Vandré4 em Disparada: porque gado a gente marca / tange, ferra, engorda e mata, / mas com gente é diferente.

Dessa forma, marcado no coração, o seu destino se revelará na luta com Bem-Bem. É o momento em que grita algo que remete ao símbolo com que fora marcado, o signo do triângulo, da transcendência e da totalidade: Emnomodopadrodofilhodoespritosantoamein – em nome da Trindade.

Guimarães Rosa articula o mundo sofisticado da mística e do esoterismo da alquimia com o universo popular – no caso, o catolicismo popular sertanejo, mágico e místico. Tudo fica verossímil, mesmo pela infância de Nhô Augusto, convivendo com a avó carola, entre santimônias e ladainhas.

domingo, 3 de maio de 2009

A Hora e a Vez de Augusto Matraga - Resumo

A estória de Augusto Matraga mistura elementos de uma autêntica Tragédia Grega com ingredientes do Cristianismo como Pecado, Culpa, Castigo e Redenção. Didaticamente dividimos o conto em três fases:

Na primeira fase, temos Matraga, ou Augusto Esteves (Nhô Augusto), um homem poderoso e temido, filho de um coronel do sertão mineiro, casado com Dona Dionóra e tendo uma filha. Ele é um homem valentão, briguento e mulherengo, tem dinheiro e jagunços. Mas o Destino prepara um Castigo para Matraga: sua mulher Dionóra, que já não o ama mais, foge em companhia da filha junto com um pretendente, Ovídio. O seu maior inimigo, o Major Consilva, comprou seus jagunços e prepara uma tocaia contra Nhô Augusto. Matraga, ao saber, resolve atacar o Major e depois matar a esposa e o pretendente. Porém, ao enfrentar o jagunços do Major, acaba brutalmente ferido, cai numa ribanceira e é dado como morto.

Na segunda fase, Matraga é encontrado e tratado por um casal de negros, Pai Serapião e Mãe Quitéria. A recuperação física é lenta e dolorosa. Matraga é invadido por uma profunda tristeza e passa a refletir sobre seu comportamento. Temos ai um momento de arrependimento, onde a sua tragédia pessoal é vista como um Castigo do Destino. Matraga se arrepende e quer ir para o céu "mesmo que seja a porrete".

A terceira fase, temos a chegada ao vilarejo do bando do cangaceiro Joãozinho Bem-Bem. No vilarejo todos temem o bando mas Matraga, sentindo uma identificação pessoal com Joãozinho (Nhô Augusto também foi um homem poderoso e temido no passado recente), convida o grupo a se hospedar com ele.
Nesta fase encontramos a Tentação e a Redenção. Matraga é convidado por Joãozinho a integrar o bando, tal como Cristo foi tentado pelo diabo no deserto, e rejeita a proposta. O bando parte e posteriormente Matraga os encontra em outra localidade próxima. Como um jagunço tinha sido morto pelas costas por um morador do vilarejo que fugira, o chefe Joãozinho Bem-Bem resolve matar os homens de sua família e maltratar as mulheres. Matraga se opõe a esta injustiça, enfrenta com armas o bando e num duelo final, acaba morrendo junto com Joãozinho. È o sacrifício pessoal como prova da fé, a Redenção. Como Cristo na cruz, Augusto Matraga encontra sua Hora e sua Vez.
Objetivo -
A finalidade deste Blog é, num sentido geral, incentivar a discussão de Filosofia e também, num sentido mais estrito, preparar o seminário sobre o conto de Guimarâes Rosa "A Hora e a vez de Augusto Matraga".
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