quinta-feira, 7 de maio de 2009

A hora e a vez de Augusto Matraga ou “de como alguém se torna o que é”

In: Literatura e Sociedade. São Paulo: USP, FFLCH e DTLLC, 2007/2008

Adélia Bezerra de Meneses

Universidade Estadual de Campinas / Universidade de São Paulo

Estória de um valentão, Augusto Esteves Matraga, prepotente, opressor, desrespeitador de mulheres e violento ao extremo. Guimarães Rosa o apresenta como alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros (...); duro, doido, sem detença; e ainda: estúrdio, estouvado e sem regra.

Adélia Bezerra de Meneses destaca que sem detença e sem regra quer dizer sem lei. Nada o detém, não bastasse, ele nunca havia trabalhado.

O conto se inicia num período de baixa na vida de Nhô Augusto (dívidas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, terras no desmando, as fazendas escritas por paga), até mesmo a mulher, a quem ele desdeixava, apaixona-se e foge com outro, levando a filha. E o outro era diferente! Gostava dela, muito... Mais do que ele mesmo dizia, mais do que ele mesmo sabia, da maneira de que a gente deve gostar.

A autora é enfática ao chamar a atenção do leitor para o nome do outro, a saber: Ovídio. Esse é o nome do escritor latino que escreveu A arte de amar. Dessa arte Nhô Augusto não conhecia nada. De Dionora, gostava (...) da sua boca, das suas carnes. Só. O que ele conhecia era o amor venal das prostitutas, das mulheres perdidas. Também, não respeitava mulher dos outros.

      Mãe de Nhô Augusto morreu com ele ainda pequeno... Teu sogro era um leso, não era para chefe de família... Pai era como se Nhô Auguso não tivesse... Um tio era criminoso, de mais de uma morte, que vivia escondido, lá no Saco-da-Embira... Quem criou Nhô Augusto foi a avó... Queria o menino p´ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e ladainha...1

Depois de levar uma terrível surra e ser marcado a ferro com a marca de gado do Major, foi dado como morto. Um casal de pretos, que morava nas redondezas, acha “vida funda” no corpo de Nhô Augusto e cuidam dele. Mãe Quitéria lhe leva comida à boca, dá-lhe de beber a cuia d’água: ela e Pai Serapião colocaram talas em suas fraturas, dão lhe remédio de ervas, é Pai Serapião quem lhe lava as feridas bichadas com creolina etc. Nhô Augusto regride a uma situação infantil – de um bebê. Recebe cuidados corporais que, na linguagem da psicanálise, reinvestem o corpo de Nhô Augusto de afeto.

Quitéria “quita” o que era devido a Matraga, em termos de ausência da figura materna. Ele fica quites com essa grande falta. Serapião, por sua vez, vem de Serapis, deus egípcio (de Menphis, da época ptolomaica), e que mais tarde foi identificado com o deus Esculápio (ou Asclépio), deus da Medicina – que não apenas curava os doentes, mas ressuscitava os mortos. Pai Serapião restaura para Nhô Augusto o significante paterno. Assim, é como se Nhô Augusto revivesse a situação de desamparo infantil, mas, agora, com possibilidade de reparação.

Hélio Pellegrino, num texto intitulado Pacto edípico e pacto social, diz:

      Não nos esqueçamos de que o pai é o primeiro e fundamental representante, junto à criança, da lei da cultura. Se ocorre, por retroação, uma tal ruptura, fica destruído, no mundo interno, o significante paterno, o Nome-do-Pai, e em consequência, o lugar da Lei. Um tal desastre psíquico vai implicar o rompimento da barreira que impedia – em nome da lei – a emergência de impulsos delinquenciais pré-edípicos.2

O início do conto dá mostras de quão longe iam tais impulsos delinquenciais de Nhô Augusto. E, a Lei da Cultura, ou Lei do Pai, diz que civilizar é reprimir, ou, então, suprimir. Na esteira de Freud, dá lugar a reflexões sobre o trabalho. Para Hélio Pelegrino, sob a ótica do Pacto Social, trabalhar é aceitar uma ordem simbólica, é disciplinar-se, é abrir mão da onipotência e da arrogância primitiva em nome de um todo articulado organicamente.

Na fala com o padre, este diz a Nhô Augusto sua vida foi entortada no verde. E, ainda: Você nunca trabalhou, não é? Pois agora, por diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Sugere-lhe dominar sua agressividade: Modere seu gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que ele. Vislumbra-se uma repressão instintual para se passar do mundo da natureza para o mundo da cultura.

Nhô Augusto canalizará sua valentia e violência numa linha ética, altruísta. Recusa o convite para se amadrinhar com a gente de Joãozinho Bem-Bem. Sacrifício da satisfação instintual em benefício de toda a comunidade.

Em sua partida, toma um burro por montaria e deixa-se guiar pelo acaso. Entrega-se ao destino. O acaso representa a visão de mundo popular, sendo articulado ao sagrado e ao Destino. No mais das vezes, na narrativa roseana, deixar-se guiar por um animal é sinal de salvação, como no conto Burrinho pedrês.

É levado, então, a um povoado que está em ebulição, onde o bando de Joãozinho Bem-Bem pretende vingar a morte à traição de Juruminho. O velho preto pede clemência (pede pelo sangue de Cristo, pelas lágrimas da Virgem, e pelo corpo de Cristo na Sexta-Feira da paixão), dado que a vingança recairia sobre pessoas inocentes (o assassino havia fugido). Joãozinho Bem-Bem não pode atendê-lo. É a regra, o nomos do sertão. Então, Nhô Augusto, na defesa dos desamparados, intervém. É a lei de Talião, representada por Joãozinho Bem-Bem, contra a lei do coração, ou lei cristã, representada pelo Nhô Augusto convertido. Este usa de toda a sua violência, num sentido ético, para salvar os fracos. É por meio da violência que ele revelará seu ethos violento. A tragédia mostra a impossibilidade de conciliação entre leis diferentes.

As categorias aristotélicas se revelarão operantes: a anagnorisis, isto é, o reconhecimento da própria identidade. Na reviravolta do destino, Matraga é reconhecido por um conhecido e meio parente. No momento de sua morte ele tem sua identidade revelada. Ainda, o narrador se refere a ele como Matraga. Morre nomeado, identificado, individualizado.

É pertinente observar o elemento a marca3 com que Matraga é ferrado, um triângulo inscrito numa circunferência. Há três itens que não são elementos aleatórios (nome de Matraga, sua marca e sua hora – kairós), mas integrados.

Trata-se de duas figuras básica, singularmente simples, dotadas de alta energia simbólica. Nogueira Galvão estuda essa simbologia transitando por estudos da heráldica, da cabala, da alquimia. O triângulo eqüilátero simboliza a perfeição, sendo encontrado na iconografia de todas as civilizações desde os tempos imemoriais. Tornou-se representação gráfica da Trindade Cristã: Deus é um ser trinitário. O círculo, por sua vez, um ponto expandido, ao mesmo tempo a mais simples e a mais complexa das formas geométricas, representa a totalidade. São sinais de transcendência. Duas formas vetustas que se potencializam.

É essa marca, contudo, que é tatuada na carne de Matraga – marca de ferrar gado (sinal de propriedade que denuncia o dono do animal). Matraga saberá transformar essa marca de desonra em marca de pertença. O que para o major Consilva e seus capagangas é marca aviltante, torna-se sinal de destino. É a dor do ferro em brasa na polpa glútea que faz com que Matraga, inerme no chão, depois de ser moído por pancadas, dê um salto mortal que ao mesmo tempo é um salto para a vida.

Roberto dos Santos, no seu magnífico filme: A hora e a vez de Augusto Matraga, de 1965, não dá muito importância à descrição da marca de gado do major. Ele não era muito dado a veleidades exotéricas. E o que se vê no filme é um ferro com uma forma que se assemelha a um C (certamente de Consilva), ou mesmo uma ferradura. Há um descaso com a simbologia. Contudo, em claro apelo visual, Nhô Augusto é marcado no peito. O que é bem mais dramático do que na polpa glútea. A marca de gado se faz na perna, na anca, enquanto a de pertença se faz no peito, simbolicamente no coração. Portanto, a transcendência que se pretendia expulsar, volta com mais força, pois, como canta o Vandré4 em Disparada: porque gado a gente marca / tange, ferra, engorda e mata, / mas com gente é diferente.

Dessa forma, marcado no coração, o seu destino se revelará na luta com Bem-Bem. É o momento em que grita algo que remete ao símbolo com que fora marcado, o signo do triângulo, da transcendência e da totalidade: Emnomodopadrodofilhodoespritosantoamein – em nome da Trindade.

Guimarães Rosa articula o mundo sofisticado da mística e do esoterismo da alquimia com o universo popular – no caso, o catolicismo popular sertanejo, mágico e místico. Tudo fica verossímil, mesmo pela infância de Nhô Augusto, convivendo com a avó carola, entre santimônias e ladainhas.

Um comentário:

  1. Incrível: vou tatuar mês que vêm a marca do gado do major na minha polpa glútea direita: que soia ser um triângulo inscrito numa circunferência

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