quinta-feira, 7 de maio de 2009

Augusto Matraga e Nietzsche

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Seminário 8 - A Hora e a Vez de Augusto Matraga
Nietzsche – “Tornar-se o que é”
Por Pedro Henrique Dias Batista
A interpretação minuciosa do conto “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” exige também a construção de um paralelo entre a transformação ocorrida por Nhô Augusto após seu espancamento e após a inscrição da marca em sua polpa glútea direita e a transformação do homem nas palavras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche.
Em seu livro Ecce Homo, cujo subtítulo é “Como alguém se torna o que é”, Nietzsche analise a condição humana no tempo presente e os elementos que contribuem para a constante transformação do ser humano. Para fundamentar as diferenças individuais, o autor alemão analisa a instintiva autodefesa, ou seja, o apartar daquilo que não é necessário e não vai de acordo com o gosto do indivíduo.
O “não” é a forma com que esta separação se torna possível. Este “não” definitivo deve ser uma exceção à regra, sendo um instrumento de amputação e afastamento somente do que não é necessário e que seria passível de negações futuras. Em regra, deve-se aceitar-se aquilo que é necessário ou que não cause problemas, pois somente assim a autodefesa condiz com condutas inteligentes. A habitualidade não-fundamentada do “não” afasta o sentido inteligente da negação e excede os limites da autopreservação.
Partindo disso, Nietzsche responderá a pergunta sobre como a gente se torna o que a gente é. Considerando a autodefesa, a autopreservação e o egocentrismo, o autor verá o destino como conseqüência do ser humano enquanto objeto em constante mutação, uma vez que tudo influi de alguma forma no ser humano, não só as idéias que o indivíduo tem, não só seus acertos, mas também decisões erradas, descaminhos, atrasos, modéstia, seriedade, entre outros fatores.
Desta forma, afasta-se qualquer idéia de previsibilidade quanto ao futuro e, conseqüentemente, quanto ao reconhecimento do indivíduo como ele é no presente. Quando se imagina o futuro, quando se planeja ações, considera-se o momento presente para a posterior especulação, ou seja, aquele que enxerga si mesmo no futuro, imagina-se na forma presente, porém no momento futuro pensado. Porém, esta previsão interna não ocorre, pois aí não são consideradas as constantes mudanças do ser. Não é possível antever os acertos e desacertos que levarão à condição futura do indivíduo.
Não só a tarefa, o objetivo e o sentido são causadores das decisões. Existem também momentos em que ocorrem impulsos desinteressados por parte do indivíduo, ou seja, atitudes irracionais, que trabalham em prol do egocentrismo e da egocultivação e que também determinam a essência futura.
Por estas razões, mesmo o “ser” (essência) presente está longe de ser reconhecido pelo indivíduo. O que ele assume como tarefa a ser realizada, ou seja, projetada para o futuro, já é realizada no presente sem que haja esta percepção, pois situações determinantes ocorrem constantemente, racionalmente ou não.
A soma destes fatores todos ocasiona uma transvaloração dos valores intrínseca ao ser humano. A multiplicidade de recursos determinantes presente no indivíduo é grande, porém, internamente, estes recursos possuem uma harmonia própria, sem que haja qualquer tipo de antítese, mistura ou reconciliação entre eles. Nietzsche considera isso um caráter artístico do instinto, pois houve o encaixe de toda uma variedade de experiências que determinou o que o indivíduo é, ainda que ele não possa apreender o “ser” (essência) em um tempo presente. Nietzsche se considera, portanto, a síntese de uma natureza heróica, proveniente de um conjunto atemporal de experiências.
Desta forma, Augusto Matraga se torna o que é. O momento de sua redenção, no qual ocorre sua hora e sua vez, caracterizado pelo término da luta final com Joãozinho Bem-Bem, simboliza o fim de sua tarefa, significando a missão cumprida e o definitivo tornar do ser o que ele é.
Ocorre uma sucessão de fatos com a personagem principal, desde a sua criação deficitária na infância, passando pelo seu período de poder e maldade, sem a assunção de qualquer valor religioso, a perda de sua identidade após a surra realizada pelos capangas do Major Consilva, o renascimento e a vivência dos novos valores e a busca por uma justiça em sentido religioso. Esta sucessão de fatos não era previsível, mas sim atuou como obra do destino e definiu a tarefa desempenhada por Matraga, a qual atingiu sua finalidade. Guimarães Rosa evidencia isto na conclusão do conto, na qual Matraga é reconhecido, extinguindo a relação de anomia em que sempre esteve no período da transformação.
O destino desempenha, portanto, apesar de toda a lógica que pode ser constatada, um papel importante na obra, o que se relaciona diretamente ao que é formulado por Nietzsche, pois as vivências, decisões, impulsos desinteressados, instinto de autodefesa e influência do egocentrismo agem de maneira unitária de forma a determinar “o que” e “quem” é Augusto Matraga. Sua tarefa só foi reconhecida depois de completada, uma vez que, antes disso, era impossível seu reconhecimento e sua previsão.
Conclusivamente, a transformação é dada em virtude de uma alteração interna inviolável de Matraga. Não há, portanto, uma modificação essencial, em que algo novo e sem relação nenhuma com o passado é inserido ou algo é retirado de Matraga. O “tornar-se o que é”, como ressalta Nietzsche, é decorrente de uma inteireza histórica individual. A luta final e a morte de Augusto Matraga determinam a sua hora e sua vez. Sua identidade é reencontrada, ele atinge sua realização e seu destino.
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Seminário 8 - A Hora e a Vez de Augusto Matraga
A Hora e a Vez de Augusto Matraga ou “de como alguém se torna o que é”
Adélia Bezerra de Meneses
Por Pedro Henrique Dias Batista
Adélia Bezerra de Meneses faz, neste texto, uma interpretação minuciosa do conto de Guimarães Rosa, explicitando os papéis de cada personagem, a relação entre os nomes das personagens e estes papéis e outros traços significativos presentes no conto.
O intuito aqui é discorrer sobre a visão da autora com relação ao símbolo tatuado pelos capangas do Major Consilva na “polpa glútea” direita de Nhô Augusto, após seu espancamento. O interessante é perceber que a figura tatuada, um triângulo inscrito em uma circunferência, possui um grande valor simbólico.
Inicialmente, extrai-se uma relação deste símbolo com a trindade cristã (o Pai, o Filho e o Espírito Santo), o que possui uma relação direta com a personagem principal, que passa de uma anomia religiosa para uma situação de grande sofrimento, simbolizando a purgação dos pecados e a mudança para uma conduta correta sob o ponto de vista religioso, honrando a honestidade, o trabalho e a justiça (sob o ponto de vista da religião católica, tomando por base o amor ao próximo) ao invés de violência e egoísmo.
Consta ainda no conto que Matraga saberá “transformar sua marca de ignomínia em marca de pertença”, evidenciando que a vida anterior à marca seria um período perdido, um período de maldades que não honra sua condição humana e no qual não há qualquer diretriz valorativa religiosa. No período posterior à marca, porém, Augusto Matraga carrega a marca como o símbolo de sua força de superação, de sua mudança e da inclusão de valores em seu existir. A marca, portanto, significaria o momento da transformação.
Na busca pelo significado do nome “Matraga” e sua relação com a figura tatuada, a autora remete ao matraz, que consiste em um vaso utilizado para operações alquímicas, como destilação, por exemplo. Como se sabe, alquimia não significa somente a transformação em ouro, mas também a transformação elementar, anímica, de todo um processo existencial, significando uma tendência do objeto a ser como realmente é, ou seja, a exposição dos traços evidenciados pelo destino. Esta descrição é adequada perfeitamente à condição em que se encontra Augusto Matraga, uma vez que este realmente experimenta uma transformação alquímica, transformando-se a essência anterior em um acessório elementar da essência posterior, existindo assim, praticamente, um renascimento (daí a ressurreição relacionada a Jesus Cristo e a purgação dos pecados humanos).
O processo de recuperação de Nhô Augusto, considerando a descrição de suas feridas e sofrimento quando está aos cuidados de Pai Serapião, também possui relação com os processos alquímicos de transformação. Assim, a putrefação de Augusto Matraga é elemento condizente com a purgação e a putrefação alquímica, a qual culmina com sua transformação existencial.
É importante lembrar que Matraga sofre uma mudança. Nada escapa para fora ou se mistura à essência. Tudo é uma transformação elementar que busca “tornar o ser o que ele é” (discutiremos isto no próximo texto, o qual abordará a relação entre o processo existencial constante de Nietzsche e o descrito no conto de Augusto Matraga). O novo ser, fruto do renascimento, portanto, é novo somente no seu sentido externo, tomando por base os valores ou a perfeição, por exemplo, mas intrinsecamente possui como elementos essenciais aqueles já existentes outrora.
Conclusivamente, a autora discorre ainda sobre o kairós, que é o momento astrológico oportuno da alquimia, no qual as coisas se farão. No conto, este momento é dado na luta final entre Nhô Augusto e Joãozinho Bem-Bem, no qual o primeiro tem sua “áurea hora”, sua “aurora”. Este momento representa a hora e a vez de Augusto Matraga, significando a realização do que tem que ser realizado, o kairós de Augusto Matraga. Não à toa, as palavras usadas para definir a personagem principal ao longo do conto é “Nhô Augusto”, mas no final ele é denominado “Matraga”, o que leva ao reencontro de sua identidade e à sua autorrealização.

A hora e a vez de Augusto Matraga ou “de como alguém se torna o que é”

In: Literatura e Sociedade. São Paulo: USP, FFLCH e DTLLC, 2007/2008

Adélia Bezerra de Meneses

Universidade Estadual de Campinas / Universidade de São Paulo

Estória de um valentão, Augusto Esteves Matraga, prepotente, opressor, desrespeitador de mulheres e violento ao extremo. Guimarães Rosa o apresenta como alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros (...); duro, doido, sem detença; e ainda: estúrdio, estouvado e sem regra.

Adélia Bezerra de Meneses destaca que sem detença e sem regra quer dizer sem lei. Nada o detém, não bastasse, ele nunca havia trabalhado.

O conto se inicia num período de baixa na vida de Nhô Augusto (dívidas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, terras no desmando, as fazendas escritas por paga), até mesmo a mulher, a quem ele desdeixava, apaixona-se e foge com outro, levando a filha. E o outro era diferente! Gostava dela, muito... Mais do que ele mesmo dizia, mais do que ele mesmo sabia, da maneira de que a gente deve gostar.

A autora é enfática ao chamar a atenção do leitor para o nome do outro, a saber: Ovídio. Esse é o nome do escritor latino que escreveu A arte de amar. Dessa arte Nhô Augusto não conhecia nada. De Dionora, gostava (...) da sua boca, das suas carnes. Só. O que ele conhecia era o amor venal das prostitutas, das mulheres perdidas. Também, não respeitava mulher dos outros.

      Mãe de Nhô Augusto morreu com ele ainda pequeno... Teu sogro era um leso, não era para chefe de família... Pai era como se Nhô Auguso não tivesse... Um tio era criminoso, de mais de uma morte, que vivia escondido, lá no Saco-da-Embira... Quem criou Nhô Augusto foi a avó... Queria o menino p´ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e ladainha...1

Depois de levar uma terrível surra e ser marcado a ferro com a marca de gado do Major, foi dado como morto. Um casal de pretos, que morava nas redondezas, acha “vida funda” no corpo de Nhô Augusto e cuidam dele. Mãe Quitéria lhe leva comida à boca, dá-lhe de beber a cuia d’água: ela e Pai Serapião colocaram talas em suas fraturas, dão lhe remédio de ervas, é Pai Serapião quem lhe lava as feridas bichadas com creolina etc. Nhô Augusto regride a uma situação infantil – de um bebê. Recebe cuidados corporais que, na linguagem da psicanálise, reinvestem o corpo de Nhô Augusto de afeto.

Quitéria “quita” o que era devido a Matraga, em termos de ausência da figura materna. Ele fica quites com essa grande falta. Serapião, por sua vez, vem de Serapis, deus egípcio (de Menphis, da época ptolomaica), e que mais tarde foi identificado com o deus Esculápio (ou Asclépio), deus da Medicina – que não apenas curava os doentes, mas ressuscitava os mortos. Pai Serapião restaura para Nhô Augusto o significante paterno. Assim, é como se Nhô Augusto revivesse a situação de desamparo infantil, mas, agora, com possibilidade de reparação.

Hélio Pellegrino, num texto intitulado Pacto edípico e pacto social, diz:

      Não nos esqueçamos de que o pai é o primeiro e fundamental representante, junto à criança, da lei da cultura. Se ocorre, por retroação, uma tal ruptura, fica destruído, no mundo interno, o significante paterno, o Nome-do-Pai, e em consequência, o lugar da Lei. Um tal desastre psíquico vai implicar o rompimento da barreira que impedia – em nome da lei – a emergência de impulsos delinquenciais pré-edípicos.2

O início do conto dá mostras de quão longe iam tais impulsos delinquenciais de Nhô Augusto. E, a Lei da Cultura, ou Lei do Pai, diz que civilizar é reprimir, ou, então, suprimir. Na esteira de Freud, dá lugar a reflexões sobre o trabalho. Para Hélio Pelegrino, sob a ótica do Pacto Social, trabalhar é aceitar uma ordem simbólica, é disciplinar-se, é abrir mão da onipotência e da arrogância primitiva em nome de um todo articulado organicamente.

Na fala com o padre, este diz a Nhô Augusto sua vida foi entortada no verde. E, ainda: Você nunca trabalhou, não é? Pois agora, por diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Sugere-lhe dominar sua agressividade: Modere seu gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que ele. Vislumbra-se uma repressão instintual para se passar do mundo da natureza para o mundo da cultura.

Nhô Augusto canalizará sua valentia e violência numa linha ética, altruísta. Recusa o convite para se amadrinhar com a gente de Joãozinho Bem-Bem. Sacrifício da satisfação instintual em benefício de toda a comunidade.

Em sua partida, toma um burro por montaria e deixa-se guiar pelo acaso. Entrega-se ao destino. O acaso representa a visão de mundo popular, sendo articulado ao sagrado e ao Destino. No mais das vezes, na narrativa roseana, deixar-se guiar por um animal é sinal de salvação, como no conto Burrinho pedrês.

É levado, então, a um povoado que está em ebulição, onde o bando de Joãozinho Bem-Bem pretende vingar a morte à traição de Juruminho. O velho preto pede clemência (pede pelo sangue de Cristo, pelas lágrimas da Virgem, e pelo corpo de Cristo na Sexta-Feira da paixão), dado que a vingança recairia sobre pessoas inocentes (o assassino havia fugido). Joãozinho Bem-Bem não pode atendê-lo. É a regra, o nomos do sertão. Então, Nhô Augusto, na defesa dos desamparados, intervém. É a lei de Talião, representada por Joãozinho Bem-Bem, contra a lei do coração, ou lei cristã, representada pelo Nhô Augusto convertido. Este usa de toda a sua violência, num sentido ético, para salvar os fracos. É por meio da violência que ele revelará seu ethos violento. A tragédia mostra a impossibilidade de conciliação entre leis diferentes.

As categorias aristotélicas se revelarão operantes: a anagnorisis, isto é, o reconhecimento da própria identidade. Na reviravolta do destino, Matraga é reconhecido por um conhecido e meio parente. No momento de sua morte ele tem sua identidade revelada. Ainda, o narrador se refere a ele como Matraga. Morre nomeado, identificado, individualizado.

É pertinente observar o elemento a marca3 com que Matraga é ferrado, um triângulo inscrito numa circunferência. Há três itens que não são elementos aleatórios (nome de Matraga, sua marca e sua hora – kairós), mas integrados.

Trata-se de duas figuras básica, singularmente simples, dotadas de alta energia simbólica. Nogueira Galvão estuda essa simbologia transitando por estudos da heráldica, da cabala, da alquimia. O triângulo eqüilátero simboliza a perfeição, sendo encontrado na iconografia de todas as civilizações desde os tempos imemoriais. Tornou-se representação gráfica da Trindade Cristã: Deus é um ser trinitário. O círculo, por sua vez, um ponto expandido, ao mesmo tempo a mais simples e a mais complexa das formas geométricas, representa a totalidade. São sinais de transcendência. Duas formas vetustas que se potencializam.

É essa marca, contudo, que é tatuada na carne de Matraga – marca de ferrar gado (sinal de propriedade que denuncia o dono do animal). Matraga saberá transformar essa marca de desonra em marca de pertença. O que para o major Consilva e seus capagangas é marca aviltante, torna-se sinal de destino. É a dor do ferro em brasa na polpa glútea que faz com que Matraga, inerme no chão, depois de ser moído por pancadas, dê um salto mortal que ao mesmo tempo é um salto para a vida.

Roberto dos Santos, no seu magnífico filme: A hora e a vez de Augusto Matraga, de 1965, não dá muito importância à descrição da marca de gado do major. Ele não era muito dado a veleidades exotéricas. E o que se vê no filme é um ferro com uma forma que se assemelha a um C (certamente de Consilva), ou mesmo uma ferradura. Há um descaso com a simbologia. Contudo, em claro apelo visual, Nhô Augusto é marcado no peito. O que é bem mais dramático do que na polpa glútea. A marca de gado se faz na perna, na anca, enquanto a de pertença se faz no peito, simbolicamente no coração. Portanto, a transcendência que se pretendia expulsar, volta com mais força, pois, como canta o Vandré4 em Disparada: porque gado a gente marca / tange, ferra, engorda e mata, / mas com gente é diferente.

Dessa forma, marcado no coração, o seu destino se revelará na luta com Bem-Bem. É o momento em que grita algo que remete ao símbolo com que fora marcado, o signo do triângulo, da transcendência e da totalidade: Emnomodopadrodofilhodoespritosantoamein – em nome da Trindade.

Guimarães Rosa articula o mundo sofisticado da mística e do esoterismo da alquimia com o universo popular – no caso, o catolicismo popular sertanejo, mágico e místico. Tudo fica verossímil, mesmo pela infância de Nhô Augusto, convivendo com a avó carola, entre santimônias e ladainhas.